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Nicotina e SARS-CoV-2

Declarações de que fumar pode aumentar o risco de COVID-19, bem como a sua gravidade, são comuns. Obviamente, a premissa não é infundada. O tabagismo está associado ao aumento do risco de praticamente todas as outras doenças infeciosas respiratórias.

Ainda que estas ilações sejam minimamente plausíveis, a perspetiva mais arrojada vem da suspeita de uma correlação particularmente forte entre o tabagismo o aumento dos recetores da ACE-2 nos pulmões, ponto de entrada para o vírus SARS-CoV-2. Ora, à luz desta hipótese – defendida, também, pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) – um aumento na densidade de recetores, como efeito do tabagismo, forneceria ao vírus mais pontos de entrada para infetar.

Todavia, ao contrário do que seria mais conveniente, essa afirmação – de risco – está enraizada na expectativa e não em dados factuais.

Os cientistas especulam sobre os potenciais efeitos protetores da nicotina desde que os primeiros dados de coronavírus da China mostraram que os fumadores eram infetados a taxas muito mais baixas do que o público em geral. Mais de 50% dos homens chineses fumam cigarros, mas estes cinco estudos mostram que, apenas 14,5%, 3,9%, 7,3%, 6,4% e 6,4% dos pacientes infetados por COVID-19, fumavam.

Ainda assim, estes dados poderão ser considerados como limitados, uma vez assentarem na ausência de ajuste a outros fatores que podem influenciar os resultados. Por exemplo, os fumadores são mais propensos a ter hipertensão, doenças cardíacas ou diabetes, comorbidades que se apresentam por entre os principais fatores de risco para mortalidade por COVID-19. O não ajuste para essas variáveis ​​é de significância considerável e limita a capacidade de inferir conclusões inquestionáveis.

Konstantinos Farsalinos e Anastasia Barbouni, da Universidade de Atenas e Raymond Niaura, da Universidade de Nova York, foram mais longe ao, num artigo recente, analisarem dados de treze estudos chineses, abrangendo um total de quase 5.960 pacientes (sendo 55,1% homens). Nestes, a taxa de tabagismo varia de 1,4% a 12,6% entre os hospitalizados por COVID-19. Assim e de acordo com os autores,

“a prevalência combinada de fumar, observada nos 13 estudos analisados, ​​foi de aproximadamente 1/4 da prevalência da população”. Consistentemente, “uma baixa prevalência de tabagismo atual foi observada em todos os estudos “, observam igualmente.

Os dados dos Estados Unidos da América, publicados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC),  sobre casos detetados entre 12 de fevereiro e 28 de março, são ainda mais marcantes: fumadores diagnosticados com COVID-19 representam 1,3% dos casos diagnosticados, 2,1% dos pacientes hospitalizados e 1,1% dos casos em ressuscitação.

A nível nacional, a Comissão de Trabalho de Tabagismo, inerente à SPP, parece estar em contraciclo com as supracitadas evidências. Num documento publicado na sua página, refere-se que” a evidência científica disponível sugere uma associação entre tabagismo e gravidade da COVID-19”. Para tal, baseiam-se, por exemplo, num pequeno artigo de Hua Cai, em que o autor tentou explicar o aumento da mortalidade entre homens infetados pelo COVID-19 pelo aumento da incidência de tabagismo na população masculina; no entanto, a conclusão final de Cai foi que “a literatura atual não apoia o tabagismo como fator predisponente em homens ou em qualquer subgrupo de infeção por SARS-CoV-2” – facto não referido no documento da Comissão de Trabalho de Tabagismo da SPP. Aliás, o artigo parece, inclusive, corroborar o anteriormente indicado, ao quantificar entre 1,4% a 12,6% os homens com COVID-19 que eram fumadores, enquanto 50,5% dos homens na China fumam.

Da mesma forma, um estudo publicado recentemente em França, mostrou números semelhantes. Os fumadores diários foram responsáveis ​​por 4,4% a 5,3% de todas as infeções por COVID-19, o que destoa dos 25,4% da população francesa em geral que fuma. Esses autores não hesitaram em sugerir que

” os utilizadores de nicotina têm uma probabilidade muito menor de desenvolver infeção grave por SARS-CoV-2, quando em comparação com a população em geral”.

A possível explicação, dada por um grupo de trabalho internacional liderado pelo célebre neurobiólogo do Instituto Pasteur, Jean-Pierre Changeux, publicada na plataforma Qeios, contraria totalmente a premissa do grupo de trabalho nacional, ao colocar em hipótese que a nicotina se liga ao recetor ACE-2 das células, a porta de entrada para o coronavírus no nosso corpo, impedindo que o SARS-CoV-2 use essa entrada e nos infete.

Um ensaio clínico está previsto para começar em França, fornecendo adesivos de nicotina para a equipe do hospital e pacientes com COVID-19, medindo os resultados, com vista a testar a possível relação entre a nicotina e o bloqueio à infeção pelo COVID-19.

Ainda assim, tal como sugerido – e bem – pelo grupo de trabalho da SPP, as evidências também mostram que, uma vez detetada, a doença deverá apresentar resultados mais graves se os pacientes forem fumadores. É, de igual forma, opinião da APORVAP que, devido aos problemas de saúde conhecidos relacionados com o seu hábito, não devemos defender o tabagismo como uma medida profilática do coronavírus, devendo ser, portanto, evitado.

Contudo, como divulgado recentemente pelo Science Media Research Center, onde diversos especialistas em saúde pública se pronunciam,

“não há evidências de que o cigarro eltrónico aumente o risco de infeção ou progressão para condições severas do COVID-19”, mas que, uma vez que mudar do tabagismo para o “vaping” melhora as condições cardiovasculares e respiratórias, é esperado, no mínimo, que os fumadores que que optam pelos mesmos, “possam ter um prognóstico melhor, se infetados pelo COVID-19”.

Chegou a hora dos grupos anti cigarros eletrónicos se aterem aos fatos e pararem de espalhar medo e informações erradas sobre um produto que está a salvar milhões de vidas a nível mundial.

Impedir novas adições desnecessárias é, sem dúvida, um objetivo nobre e que partilhamos. Todavia, sobretudo agora e tal como por nós referido anteriormente, não poderá ser uma desculpa para enganar o público de maneira a impedir que os fumadores mudem para um produto, dramaticamente, menos prejudicial.